Mauro Chaves Ao se omitir de um debate profundo sobre o projeto de transposição do Rio São Francisco, deixando que a sociedade brasileira e as futuras gerações venham a sofrer os efeitos desastrosos de um "fato consumado", imposto pelo governo, o que pode resultar numa obra tão faraônica quanto ambientalmente estúpida, o Congresso Nacional está passando um recibo de criminosa irresponsabilidade.
O Velho Chico, rio da integração nacional, cuja força das águas já foi tamanha que durante séculos o fez avançar vários quilômetros adentro do Oceano Atlântico, a ponto de embarcações pararem em pleno oceano para se abastecerem de sua água doce, hoje sofre em sua foz um trágico recuo, por insuficiência de vazão. Já se disse que esse projeto de transposição é a transfusão que tem como doador um doente internado na UTI. Se a idéia de levar águas do São Francisco, por gravidade, para o semi-árido do Nordeste setentrional já estava na cabeça generosa de dom João VI, é porque naquele tempo não existiam açudes, nem adutoras, nem estudos hidrogeológicos.
Durante séculos muitos têm defendido a transposição como solução salvadora para a tragédia das secas. Mas a quantidade formidável de açudes já construídos - que já chega a cerca de 70 mil - e a possibilidade de retirada de água do subsolo nordestino (que, embora muitos não saibam, é abundante em água) sugerem soluções muito menos dispendiosas e mais eficazes para distribuir água às populações que dela mais necessitam. E distribuição, no caso, é a palavra-chave, pois em grande parte a malsinada "indústria das secas" nordestina tem sido mantida pelos chefetes políticos para comandar o abastecimento de água de seus currais eleitorais. A transposição não significará a oferta de água a 12 milhões de nordestinos - como têm dito seus defensores -, mas sim a canalização para determinados projetos de irrigação do agronegócio, enquanto falta distribuição de água até para projetos e populações bem mais próximas do rio, nos Estados ribeirinhos.
O engenheiro Manoel Bomfim Ribeiro, especialista em hidrologia e geologia, ex-diretor do Dnocs e autor do livro Potencialidades do Semi-Árido Brasileiro, num texto sobre as obras inconclusas do Nordeste assevera: "A indústria das secas é um fato inerente à vida política da região nordestina tendo como carro chefe o pipa a desfilar pelos nossos sertões sequiosos, onde o chefe político exerce o seu poder sobre a água. Esta indústria vem num crescendo constante com obras de todos os tamanhos, açudes, canais, adutoras, obras inconclusas. Agora é a vez da Transposição, obra inócua e desprovida de significado, pois que o Nordeste setentrional, penhoradamente, agradece e dispensa as águas do rio São Francisco, por total e absoluta falta de necessidade, uma vez que já acumula, somente nos oito grandes açudes, 13 bilhões de metros cúbicos de água (5 vezes e meia a baía da Guanabara), exatamente os 8 açudes plurianuais que irão receber os magros 2 bilhões/m3 anuais (127m3/s) advindos do canal da Transposição. A evaporação anual dos 13 bilhões é da ordem de 4 bilhões, o dobro da água que vai chegar do rio. Uma irrisão. Mais ainda, os 3 Estados mais ávidos por mais água, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, já acumulam nos seus imensos reservatórios 26 bilhões de metros cúbicos, 70% das águas estocadas no semi-árido brasileiro, 11 vezes as águas da baía da Guanabara."
E em outro texto escreve o especialista: "Dos aqüíferos do Nordeste podem ser extraídos até 20% das reservas existentes, cerca de 27 bilhões de m3/ano sem queda de pressão hidrostática, pois são reabastecidos, anualmente, pelas águas de chuvas e que drenam verticalmente para o seio da terra. Só extraímos até hoje cerca de 4% deste potencial disponível, 800 a 900 milhões de m3 através de 90.000 poços, sendo que 40% destes estão paralisados por razões diversas menos por falta de água. O deserto de Negev, com área de 16.000 km2, fornece para Israel 1 bilhão de m3/ano de água extraído do seu subsolo, mais que a produção da nossa região cuja área é 60 vezes maior que aquele deserto."
Para o jurista Ives Gandra Martins, há pelo menos cinco argumentos sobre a inconstitucionalidade da transposição: fere o pacto federativo - atinge quatro Estados que não foram consultados (Minas, Bahia, Sergipe, Alagoas); fere o princípio da razoabilidade - já que há formas menos onerosas, sem prejudicar o Rio São Francisco, utilizando-se de reservas de água do subsolo ou da interligação de açudes nos Estados donatários; fere o princípio da proporcionalidade - ao, em vez de revitalizar o rio, enfraquecê-lo ainda mais com a transposição de suas águas; fere o princípio da preservação ambiental - por destruir fauna e flora das margens do Rio São Francisco, além da flora fluvial e das espécies de peixes; fere o princípio da eficiência, pois se gastará mais dinheiro dos contribuintes para um projeto muito mais oneroso do que o da ligação dos açudes ou da retirada de água do subsolo.
Esse projeto faraônico, de pelo menos R$ 15 bilhões, além de poder resultar em desastre ambiental - como o do Rio Colorado (para o México) e o do Rio Amarelo, na China, dentro do "espetáculo de horror dos rios que morreram" a que se refere João Alves Filho -, está criando uma cizânia entre os Estados ribeirinhos e o do Nordeste setentrional, acirrada pelo presidente Lula, quando disse aos cearenses que seus irmãos nordestinos não lhes negarão (com a transposição) "uma cuia de água". Só não contou que está mandando o Velho Chico pra cucuia.
Se o Congresso mostra vergonhosa frouxidão em não debater esse tema, cabe à sociedade mobilizar-se para fazê-lo.
Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e pintor. E-mail:mauro.chaves@attglobal.net |
Nenhum comentário:
Postar um comentário